quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Eminência Parda II

Por essas e outras, Brown é chamado de "presidente" pelos parceiros de som que o acompanham no que ele chama de movimento que, com a devida propor novo CD da Banda Black Rio com lançamento previsto ainda para este ano, ele investiu dinheiro do próprio bolso. Ao lado de William Magalhães, a quem chama de Monstro e que considera outra referência musical, ele colocará nas ruas o álbum Supernova Funk Samba, um caldeirão sonoro negroide. Será duplo, com 33 faixas e participações que incluem Gilberto Gil, Chico César, Seu Jorge, Elza Soares, César Camargo Mariano, Márcio Local e Mariana de Moraes, neta de Vinicius de Moraes, todos convidados de acordo com o gosto musical de William. Também estarão no disco o próprio Brown, Ice Blue (parceiro na vida e nos Racionais), Dom Pixote, o rapper Dubronk's e também o produtor Devasto. "Jovens muito talentosos no rap", avaliza o presidente.


Algumas das músicas do disco já têm causado divergências entre os ouvintes de Brown e até entre seus parentes. "Mulher Elétrica", há tempos disponível na internet, é o saco de pancadas da vez. Nasceu quando ele ouvia discos antigos no bar de um amigo e se deparou com a versão de "Electric Lady", da banda Con Funk Shun. Como não fala inglês, muitas das músicas que cria nascem depois de ele pegar uma versão original no idioma estrangeiro e encaixar rimas em português.

Ao consultar o filho, Jorginho, por entender que o gosto musical do menino reflete o dos jovens de hoje, Brown foi voto vencido ao dizer que estava na dúvida entre gravar um videoclipe de "Mulher Elétrica", sua primeira opção, ou "Mente do Vilão", outra das suas no novo CD da Black Rio, que sairá pela Cosa Nostra. O filho ainda prefere o estilo mais gangsta de o pai cantar. "Fiz um som diferente hoje, mas ainda é o gueto, nunca deixará de ser", argumenta. Mas ele não está desamparado dentro de casa. Dodô (Domênica) apóia a ode às mulheres. Brown também gosta de mostrar seus novos sons para os jovens dos becos da Zona Sulantes de lançá-los. Ele respeita a opinião deles e, não raramente, ouve muitas críticas às músicas.

Para ele, trabalhar com William Magalhães foi como estar ao lado de um de seus ídolos internacionais, Barry White, cujo som "Just the Way You Are" o faz tremer: "É muito antiga. Quando toca, vejo lá no fundo do baú da vida, eu estava lá não sei onde, sinto saudade das pessoas. É por isso que gosto dessas músicas. Sinto até o cheiro do café da época, mano, o cheiro da comida''.

O rapper Tupac Amaru Shakur, morto a tiros em setembro de 1996 em Las Vegas, ainda é a referência maior. "Thugz Mansion", do próprio, é o melhor rap internacional para Brown, que na maior parte do tempo ouve "muita música velha", como diz. "Pra Mãe", de Nill no álbum Longa Estrada Caminhada, foi o rap em português que mais o marcou até hoje. Ao ver a mãe, dona Ana, enquanto estava hospedado em Salvador, à espera de mais uma apresentação, Brown conta que chorou durante meia hora refl etindo os versos de Nill. "Comecei a pensar coisas muito profundas e que não dizem respeito à maioria."

Quando não está com os Racionais nem fazendo música nova, Brown dedica tempo a outra ação para chacoalhar o rap: o coletivo Big Ben Bang Johnson. "É uma explosão musical bem louca, tem a ver com o Ben Jor e também com o ex-corredor Ben Johnson", explica.

O Big Ben, um nome que Brown sonhou soar como o de uma banda funk dos anos 70, é a soma de vários nomes do rap paulistano que, a princípio, foram reunidos por Brown para cantar apenas músicas inéditas. Mas ele foi voto vencido. Não tem integrantes fixos nem repertório definidos. É mutante. Muda como um time de futebol e reúne principalmente os rappers que têm o respeito do próprio público dos Racionais, entre eles Helião, Sandrão, DJ Cia (RZO), DJ Lá, Cobra e Cachorrão (Conexão do Morro), Aplik e Wdee (Consciência Humana), Ice Blue, Dom Pixote e Du Bronks.

Nesse período de gestação do novo disco dos Racionais, assim como Brown e Blue levam à frente o Big Bang, KL Jay e Edy Rock também fazem apresentações com outros artistas do rap nacional, principalmente com o grupo A Família, de Campinas, e com rappers da nova geração, como Thig e Sombra.

Muitas das músicas do novo disco dos Racionais, provavelmente metade delas compostas por Brown e a outra metade por Edy Rock, mas sempre com várias participações, são mostradas entre os quatro integrantes do grupo quando eles estão em quartos de hotéis, entre um show e outro, segundo o DJ KL Jay. "Queremos que as músicas deste nosso novo disco fiquem pelo menos uns dez anos na cabeça das pessoas. Por isso estamos nos preparando bastante para quando entrarmos no estúdio no começo de 2010", projeta o DJ. Das novas, "Se Tá na Chuva" é conhecida desde outubro de 2006. Quando há álbum novo na rua, os Racionais fazem de quatro a seis apresentações por final de semana em todo o país.

Segundo Rosemeire de Jesus, empresária do grupo, com disco novo ela recebe em média 50 ligações por dia para possíveis apresentações e, não raramente, de pedidos inimagináveis para outros artistas da música brasileira. "Tem muita gente que liga até mesmo para pedir ajuda financeira", ela conta. No time de maiores de todos os tempos escalado por Brown estão, além de Barry White e Tupac, Marvin Gaye (cujo álbum Here, My Dear, de 1978, um presente de Zegon, a metade brasileira do grupo N.A.S.A., não sai do som do seu carro), The Bar- Kays, Earth, Wind & Fire, George Clinton e, com a camisa 10, James Brown. "Quando tiver uma casa grande lá no Jardim Apurá [bairro na Zona Sul de São Paulo, meio mato, meio urbanizado], quero ter caixas de som em todos os lugares para quando for receber meus amigos. Caixas embutidas até nos muros. Quando acordar, quero só apertar o play e viajar", diz. E qual será a primeira música nesse empreendimento? Sugiro "Make It Funky", de James Brown. "Essa é bruta!", devolve.

As novas ideias de Brown têm bastante influência do primo, Paulo Eduardo Salvador, também 39 anos, o Ice Blue, o mais empresarial dos quatro Racionais. Foi com Blue que Brown começou. Eram a dupla B.B.Boys (Black Bad Boys). Inspirados nos norte-americanos do Run DMC, mudaram para começar os Racionais MC's, com Kléber Geraldo Lélis Simões, o DJ KL Jay, "o mais sério dos quatro", nas palavras de Brown, e Edvaldo Pereira Nunes, o Edy Rock, "Coquinho" para Brown, "maloqueirão que nem eu". Foi Milton Sales, o primeiro produtor e empresário dos Racionais, um segundo pai de Brown, segundo o próprio rapper, quem os juntou.

"Sempre digo ao Brown: 'Temos de parar para ouvir quem quer que seja, mesmo que amanhã a gente vá falar não. Foi assim quando assinamos contrato com a Sony para distribuir um disco nosso. Não deu certo, já era. Cada um para o seu canto", conta Ice Blue. Ele afirma que o mais difícil sempre é conseguir transitar entre os extremos sociais, atravessar a ponte e sempre ser da mesma maneira, sem mudar a identidade, ser o mesmo homem.

A ponte, no caso, é ao mesmo tempo, símbolo de uma segregação socioeconômica tão criticada pelos Racionais desde 1988 - e que só depois de muitos anos passou a ser enxergada por Blue pelos dois lados - e elo entre esses mesmos opostos da cidade, os mais e os menos abastados.

Ele diz que, agora, a primeira intenção é não falar do monstro sem conhecê-lo. "A gente tem que dar oportunidade para um novo momento. Somos gravadora independente. O jeito de distribuir a música agora é diferente, é por meio do marketing. E vai ser por de um telefone se uma marca pagar. Hoje, a pirataria e a internet são incontroláveis. Sou a favor de colocar o novo disco dos Racionais de graça na internet e o fã paga quanto quiser", diz Ice Blue, enquanto se prepara para ir ao QG de William Magalhães, onde ouviríamos algumas músicas novas de Brown e seus aliados.

Esse novo momento dentro dos Racionais teve, claro, espaço para polêmica. No ano passado, Mano Brown e Ice Blue aceitaram uma encomenda da Nike e encabeçaram a produção de um disco disponibilizado para download gratuito no site da empresa. "Eles querem que eu faça uma ponte com a juventude para aliar esporte, música e a marca", conta Brown.

O disco O Jogo É Hoje, com 11 faixas cantadas por duplas de novos talentos do rap nacional selecionadas por Brown, rendeu o que ele diz ser, sem revelar quanto, "um bom dinheiro para os padrões do rap". E faz questão de afirmar ter investido boa parte na indústria do rap.

A porção dos "novos tempos" que mais interessa aos ouvintes - a música - deve chegar no primeiro semestre de 2010. Se depender de Brown, o trabalho inédito dos Racionais sai antes da Copa do Mundo na África do Sul. Ele gosta de imaginar que o público dos Racionais e até alguns dos jogadores da seleção brasileira possam se inspirar no seu som ainda antes da disputa do mundial de futebol. E não é um mero devaneio do fanático torcedor do Santos. "O Bob Marley também era santista, mano", gosta de lembrar.

Muitos jogadores de futebol, a maior parte originária de famílias humildes, gostam dos Racionais. Kleber, lateral esquerdo do Internacional e que disputa vaga na seleção para ir à Copa, contou recentemente para Brown (os dois se conhecem desde os tempos em que ele jogou no Santos) que a faixa-título do álbum promocional (cantada por Dom Pixote e Ice Blue) deixou os jogadores do time gaúcho extasiados momentos antes de um clássico contra o rival, Grêmio. "Os caras do Inter ficaram em choque com o som. Eles entraram com tudo, cheios de garra", diz o artista, orgulhoso.

Em março deste ano, Ronaldinho Gaúcho contratou os Racionais para um show na sua festa de aniversário em uma fazenda na região de Porto Alegre. "Ele viu a gente e falou: 'Não acredito!' E nós também: 'Não acredito!' Maior barato. Ele curte mesmo. Ele sabe que o tempo [aqui no Brasil] é curto. Então, curte intensamente porque sabe que vai ficar lá [fora do país] um ano sem ver ninguém. É louco você ver o cara empolgadão com a sua pessoa ali, sem nem saber o que fazer para agradar", conta Brown. "Negro Drama" (do disco Nada Como um Dia Após o Outro Dia, de 2002) está na tracklist do site oficial do jogador do Milan e também foi a música escolhida por Ronaldo Fenômeno para comemorar três gols marcados em 8 de julho deste ano. Teria sido uma jogada mercadológica do patrocinador e seu atleta símbolo? "Será? Pode ser", desdenha Brown.

O atacante Robinho, hoje no inglês Manchester City, "melhor nos últimos tempos", nas palavras de Brown, também o respeita. "O Robinho me ligou no Natal", conta. Brown foi um dos convidados para a festa de casamento do atacante da seleção.

Enquanto devora, entre goles de refrigerante, dois ou três lanches preparados pela nossa anfitriã, Brown diz gostar de jogar videogame com o filho, "sempre com o Santos", e também que o menino, um ótimo dançarino de hip-hop, nas palavras do pai coruja, aprende muito sobre músicas antigas quando joga Grand Theft Auto e sintoniza a rádio virtual "Los Santos". Ele folheia brevemente o novo livro da dona da casa, onde vê retratos de Cartola e fica impressionado ao vê-lo sem óculos escuros.

Mano Brown é um profundo conhecedor do soul, do funk e da disco music dos anos 60 e 70. "Eu o comparo com um Obelix, mas ele caiu num caldeirão de sabedoria musical", diz William Magalhães. E, nessa, até o Rei foi captado pelo radar criativo do artista do gueto. Roberto Carlos tem o inspirado em uma das músicas inéditas. Sim, Brown ouve todo tipo de música - incluindo Guilherme Arantes, um cara "gente boa pra caramba" para quem ele já cantou "Marina no Ar" quando o viu em um aeroporto.

"Aonde quero chegar ouvindo Roberto Carlos? Essa é uma boa pergunta. A música começou quando assisti ao enterro de Michael Jackson pela televisão e vi um monte de gente cantando, aquela comoção. Fui embora pensando no tema 'quanto vale o show'? Tem uma música do Roberto que fala [Brown imita o Rei]: 'o show já terminou'. Fui prestar atenção no som do Roberto Carlos, na letra, na ideia... Que letrão! O cara está falando para a mina que, para ser feliz, tem que separar agora. Acabou, vamos tirar a maquiagem e pá, umas ideias muito profundas. Quando você vê uma cena parecida assim no dia adia, você fala: 'Tem a ver, né, mano?'. E o cara já falava isso em 1973. Louco, hein?" Mas Brown ainda está com dificuldade para finalizar a música, intitulada "Quanto Vale o Show" em tempo de colocá-la no próximo disco dos Racionais. Não encontrou nenhum produtor que goste especificamente dessa sua viagem sonora com o Rei. Ele já tem a base da música em mente e, sem encontrar quem a execute, prevê produzi-la sozinho. Quer fazer o som em cima de trechos "não muito famosos, uns metais loucos", do tema da série cinematográfica Rocky, "Gonna Fly Now". Empolgadão, ele eleva a voz para explicar sua criação. "Show, show, show! Mas ninguém viajava na ideia, malandro. Tem aquela parte 'Califóóóórnia' (sic) [tenta imitar os vocais da música], tem uns trechos na sequência ali que são pá, mano, é o auge do barato, o barato arrepia. Eu fui tentar explicar na ideia e os caras [os produtores com quem tem trabalhado] não têm muita paciência para fazer. Eles não gostam do som em si, por causa do rock. Os caras são conservadores, mas eu vou fazer. Essa tem de vir no disco novo, senão passa o tempo."

Outra criação já batizada é "Cores e Valores", um som descrito como bastante próximo de "1 por Amor, 2 por Dinheiro", faixa do disco Nada como um Dia... A música terá várias participações de artistas do rap nacional. Brown sempre quer trazer as pessoas a seus projetos, abrir portas. Edgar Vida Loka, um parceiro de Brown, já fez sua parte da letra e surpreendeu o amigo. "Cores e valores é a noção de cada um, certo? O Edgar escreveu a parte dele falando assim: 'Stilo Schumacher, amarelo ou vermelho'; olha as noções de cores dele, 'um preto no piloto, uma rosa do lado'. Olha onde ele foi nessa ideia das cores, eu achei louco [Brown canta um pedaço da letra de Edgar]. São cores. Cores para ele é isso aí. Eu já vou falar de outras coisas, falar de torcida organizada, escola de samba, time de várzea. Mas já entendi a mente do Edgar e achei louco também. Ele fala de preto no piloto, mas não precisou falar do racismo, já deu para entender."

Neste momento, analisando a letra de Edgar, Brown conclui: "É aqui que o rap mudou. Às vezes, o subentendido é mais forte do que a letra em si, direta. Um preto no piloto num [Fiat] Stilo Schumacher amarelo é enquadro, malandro. O segundo raciocínio é melhor do que o primeiro. É nesse estágio que a gente tem que melhorar".



fonte
http://www.rollingstone.com.br/edicoes/39/textos/mano-brown-eminencia-parda/









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