quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Eminência Parda III

Brown diz que um exemplo de letrista a ser seguido é Chico Buarque, com quem gostaria de fazer músicas. "Ele tira surfe em cima dessas ideias aí, por isso que ele é o cara. Faz você pensar na primeira parte, na segunda ideia, na terceira ideia, na quarta, ele faz você pensar em todas ao mesmo tempo." E cita a estrutura da obra-prima "Construção": "Ele troca as palavras e você pensa em 300 mil coisas quando ele muda uma palavra para o lugar da outra. Vamos nos inspirar nos bons".


E com Caetano Veloso, assim como com Chico Buarque, um artista respeitado pela intelectualidade do Brasil, ele pensa em fazer um som? "Tenho o maior respeito pelo Caetano, mas que tipo de som a gente faria? Alguém ia ficar esquisito nessa. Não que eu não goste dele. Acho o Caetano do caralho. Ele é inteligente, está à frente do tempo o tempo todo." Brown também afirma ter vontade de gravar um dia com "gente do contexto" na música brasileira, como Zeca Pagodinho, Leci Brandão ou Djavan. Já gravou com o pagodeiro Belo e o com partideiro alto Almir Guineto, mas quer repetir essas parcerias. Entre elas, a mais desejada é a com o cantor e compositor Cassiano, que hoje praticamente vive recluso. "Já tentei, mandei recado, mas ele não quer, porque já foi muito enganado. Ele não está a fi m de começar do zero uma nova relação de amizade. Queria ouvir da boca dele. Por que você não quer, Cassiano?"

Nessa mesma toada, reconhece sempre ter usado suas letras para denunciar abusos por parte da polícia, mas hoje prefere fazer isso com mais sagacidade, ironizando, sem tratar os policiais com tanta seriedade. Ele canta um trechinho de uma de suas novas músicas, "Mente do Vilão": "Pé de porco é pé frio, vocês são meia de lã, rã, rã, rã". Pé de porco é polícia. Ele não quer mais dar nomes aos bois por acreditar que, quando aponta o dedo para um, deixa um rebanho de inimigos passar despercebido. "Atrás da farda tem um trabalhador mal remunerado. Chapéu atolado, a mente dele foi feita lá dentro [da corporação]. Ele não é a peça principal, ele é uma das peças. Agora, é claro, na rua, é com ele que a gente vai bater de frente, não é com o sargento, com o coronel. Um policial nunca é igual à gente."

Na maneira de Brown enxergar a sempre tensa relação entre a maior parte dos jovens das periferias e a polícia, principalmente a militar, ele diz ter percebido que o policial negro tende a ser mais agressivo do que o branco. "Na hora do enquadro, ele pensa que é íntimo seu. É a falha do policial negro. Ele quer ser íntimo. Ele não aceita ser confrontado. E a tendência do policial negro é ser mais agressivo do que o policial branco. Ele quer se impor."

O último grande incidente envolvendo o grupo e a PM aconteceu durante uma apresentação do evento Virada Cultural, na Praça da Sé, em maio de 2007, quando um show foi interrompido após parte do público que assistia os Racionais ter entrado em conflito com os policiais. A confusão, nunca antes comentada publicamente por Brown, foi causada, segundo ele, porque um PM caiu no chão quando tentava deter um jovem. "Vi a cena, foi do lado esquerdo [do palco]. Falei uma frase: 'A polícia foi feita para seqüestrar escravo fujão e é isso até hoje'." Depois, segundo ele, o PM agrediu o jovem que o driblara. "Os moleques viram e todo mundo se revoltou. Eles [PMs] estavam ali dispostos a arrumar treta. O barato era o Racionais e eles já vão com medo. Já são incumbidos de fazer uma função com medo. E um cara com medo... A primeira atitude violenta foi deles."

Mas foi em janeiro de 2005 que Mano Brown enfrentou um dos dias mais tristes de sua carreira. Quando os Racionais cantavam para 1.200 pessoas em Bauru, interior de São Paulo, o estudante Luís Fernando da Silva Santana, de 19 anos, foi morto a tiros por José Roberto Lourenço de Moura Júnior, de 21. Ainda com vida, Luís foi arrastado ao palco, sangrando muito. Brown se perdeu no "Pai Nosso" que rezara. "Invadiram o palco para tirar foto, pedir autógrafo, por cima do corpo. Fiquei nervoso, empurrei uns fãs. Na volta do show, deu aquele vazio, aquela incerteza de você estar ou não no caminho certo, de você ter culpa ou não, se podia interferir. Em Brasília, na saída de outro show, vi dois .mortos com a camisa dos Racionais. Nunca quisemos, mas também sei que a gente canta para a rapaziada que é fio desencapado." Brown também planeja fazer um filme. Na sua cabeça, o roteiro já começou a ser escrito e a história começa com uma narração ao estilo de Gil Gomes, radialista famoso por roteirizar dentro da cabeça de seus ouvintes, com voz inconfundível, a violência em São Paulo.

A inspiração cinematográfica de Brown passa pelo documentário Wilsinho Galiléia, feito em 1978 pelo diretor João Batista de Andrade e que era para ser exibido no Globo Repórter, mas foi embarreirado pela ditadura. A produção mostra a vida de um jovem ladrão, famoso na crônica policial paulistana no fi m dos anos 70 e morto pela polícia. Em 2007, Brown assistiu a fita ao lado do diretor na sala da veterana fotógrafa. "Ao ver aquelas imagens de favela dos anos 70, lembro-me da minha época, de quando eu era moleque. Chapei." Fez inúmeras perguntas a Andrade e soltou: "Quem sabe um dia a gente ainda não faz um trampo junto?"

No meio deste ano, quando falava com Rappin' Hood sobre Wilsinho Galiléia, Brown ficou abalado. Perguntara a Hood se ele conhecia em sua área da cidade um lugar chamado Cinco Esquinas, na divisa entre o bairro paulistano do Sacomã e a cidade de São Caetano do Sul, no ABC paulista. Antes da resposta afirmativa, Hood quis saber o motivo da pergunta. Assim que ouviu de Brown sobre o documentário, o amigo disse que, no dia anterior, estivera com Biscuí, ladrão que perdera um olho durante um roubo ao lado de Wilsinho e um dos personagens do filme. O agora "tiozão com olho de vidro" havia mandado um abraço para Brown. "Eu não acreditei, mano." Imaginava que todos os personagens retratados por João Batista estavam mortos, pela vida criminosa que levavam. "Até a mãe do Wilsinho está viva. Mora num barraco cheio de cachorros."

Menino nascido no hospital da liberdade, no Centro de São Paulo, Pedro Paulo foi criado em bairros humildes da Zona Sul com o suor escorrido exclusivamente do rosto da mãe. Dona Ana, 80 anos completados dia 9 de dezembro, foi durante muito tempo a única pessoa da família que conhecia. Do pai, de origem italiana, nada ou quase nada se sabe. Mágoa, tristeza? "Não dá para ter mágoa de uma pessoa que você nunca viu." Não ter tido o pai ao lado ajudou a moldar o caráter de Pedro Paulo. O pai faltou, mas ele e a mãe tiveram ajuda de Isac Santa Rita, pai-de-santo, filho de nigerianos, pai de 20 filhos legítimos, e que, vez ou outra, não cobrava o aluguel de dona Ana na casa em que ela era inquilina com o filho. "Ele nos ajudou demais. Como não tinha o pai presente, seu Isac era o homem de barba que beijávamos no rosto. Ele tem 90 anos e é o pai-de-santo mais zica que já existiu", conta Brown, que puxa na memória o ano de 1994. Depois de conseguir juntar R$ 7 mil embaixo do colchão, tudo ganho com o rap, deu entrada em uma partamento de um conjunto habitacional e deixou o aluguel.

Com Pedro Paulo ainda criança, dona Ana, vez ou outra, era chamada ao colégio interno (metade pago pela mãe e metade pelo patrão dela à época) onde o filho ficou por dois anos e meio para conversar com a professora dele, que queria saber por que o menino, sempre calado e pensativo, só usava roxo, marrom e preto nos seus desenhos. "Eu não gostava de amarelo, verde, azul-clarinho." Estudou até a antiga 8ª série por porque, diz, não conseguia aprender biologia, química nem física. Mas aprendeu uma tática de guerrilha - ou das cavernas - para conquistar o sexo oposto. Na época em que ganhara a maioridade, estava numa festa e simplesmente carregou a mulher que hoje é sua esposa. "Foi do jeito mais absurdo. Eu joguei ela no ombro e subi as escadas. Estou com ela até hoje." Aos 19 anos, já com os Racionais despontando com sucessos como "Hey Boy" e "Pânico na Zona Sul", Brown foi lapidado por Milton Sales, que sempre disse ao rapper ter ajudado a criar o Partido dos Trabalhadores. Muito do Mano Brown conhecido pelo grande público teve influência de Milton. "Ele até hoje me dá puxões de orelha, sempre com razão e autoridade", diz o rapper. Até por essa influência Brown admira tanto o presidente Lula e diz ter vontade de que a ministra Dilma Roussef seja a escolhida nas próximas eleições presidenciais. "Mas, para isso, ela tem de falar com a alma." Por apoio a Lula, Brown admite votar em Dilma, mas não descarta escolher a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva em 2010.

Outros parentes Brown só foi conhecer quando já estava no auge da fama, em 1999, durante um dos shows de lançamento do épico e já clássico Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais. Tinha 29 anos e, antes de cantar em Salvador, resolveu partir de carro com dona Ana e o amigo Black Blue (um dos produtores dos shows dos Racionais) para Riachão do Jacuípe, perto de Feira de Santana. Havia 55 anos que aquela senhora, até um pouco dura com o filho e derretida com os netos, não pisava na cidade. Ao chegar, ela foi reconhecida pelo padre. Em poucos minutos, alguns parentes se aproximaram.

Um deles viu o filho de Ana e, depois de cumprimentá-lo, perguntou: "Essa sua tatuagem aí no braço direito é igual àquela da capa desse novo disco dos Racionais, não é?" Surpreso, Black Blue entrou na conversa: "Ô truta, você não conhece, não? Seu primo é o Mano Brown!" Foi uma festa só e, em pouco tempo, "uns 500 parentes cercaram a praça", narra Brown, que ficou nervoso por Black Blue ter falado sobre sua identidade. "A atenção do momento tinha de ser a minha mãe." Pedro Paulo sabe que dona Ana tem orgulho do filho, mas não costuma ouvir isso dela. "Ela fala mais para as amigas." E até hoje, se dona Ana vê o filho com um cigarro nas mãos, dá sermão. "Ela bate na mão e derruba o cigarro."

Naquele mar de parentes recém-descobertos, o artista percebeu, porém, que ainda havia muito a descobrir. "Nunca tive família de sangue. Queria ver se alguém parecia comigo, se o meu nariz era de lá. Mas eu descobri que não. A minha raiz tem muito a vê com meu pai. Meus primos são diferentes de mim, são mais escuros. Não tem influência branca no meio deles - talvez muito pouco, bem menos do que eu. E eles são humildes mesmo. Povo do Nordeste, do Norte, sofredor, guerreirão mesmo. Indo lá, eu descobri que tinha muito parente meu em São Paulo que morreu. Durante a minha infância, eles estavam em São Paulo e eu não sabia."

Então com 29 anos, Brown embarcou numa ideia de que precisaria ganhar muito dinheiro, pois achava que tinha de ajudar todo aquele povo de Riachão, coincidentemente também chamado de Fundão, assim como o pedaço da Zona Sul de São Paulo onde ele costuma se esticar no divã madrugada ou outra. "Gosto de ir na Fundão para escutar as filosofias dos mais loucos, daqueles perdidos na madrugada. Às vezes, antes de voltar para casa, vou lá ouvir." Para Brown, aquela família de Riachão era sua responsabilidade. "Eu estava com a oportunidade e eles não tinham. Mas descobri que eles têm uma dignidade que é muito maior até do que uma ajuda minha. Eles não dependem da minha ajuda para ser nada. Se tentasse ajudar, eu atrapalharia."

Também aos 29, no auge das conquistas com Sobrevivendo no Inferno e a música mais reconhecida do disco, "Diário de um Detento", Brown "chapou o coco", como diz. Perdeu o rumo. Por vontade dele, que só queria ficar o dia todo na favela da Vila Fundão, os Racionais pararam de fazer shows naquele período. Foi a época em que o rapper conviveu muito com Emerson, um amigo de 25 anos de idade que o contestava bastante, e por isso ganhou sua admiração. Neguinho Emerson era envolvido com o crime e, como Brown acreditava fazer músicas para pessoas como o amigo, essa relação de amizade o fez questionar o alcance de sua música. Decidiu, então, remodelar os Racionais. Principalmente depois de não ter conseguido resgatar Emerson, que foi inspiração para algumas músicas e morreu num acidente de moto, do mundo do crime. Reza a lenda que Neguinho Emerson cansou da vida e se jogou de moto numa contramão.

De cor parda ("e raça negra"), Brown diz que os iguais a ele, mestiços, sofrem mais com o racismo do que os negros atualmente. Na visão dele, os pardos não usufruem do recente fortalecimento da autoestima do povo negro, que acontece há mais de uma década e engloba desde o sucesso dos Racionais até a eleição de Barack Obama. "No Brasil, você não vê gente da minha cor fazendo comercial, fazendo nada. Se eu não fosse o Mano Brown, seria invisível na rua." Há uma música sobre o tema pronta para o novo disco dos Racionais, não por acaso intitulada "O Homem Invisível".

Nas conversas com o negro Ice Blue, o assunto também surge. "Sou até muito mais discriminado do que o Blue. E os caras da minha cor, desse meu tom de pele, também. Você vê nas cadeias, na Febem. O cara tem medo hoje de discriminar um cara como o Blue, tem medo de falar um 'a' para um preto. Agora, um cara como eu, é toda hora, irmão. É pobre, tem cara de pobre, tem cor de pobre. Se quiser, fala que é 'moreninho'. Tenho um biótipo de ladrão. É um lance do brasileiro. Quando a escravidão estava para ser abolida, tinha muitos filhos de branco com preto nas ruas, abandonados, que não eram nem um nem outro, e foram virar ladrão mesmo. A primeira classe de gente abandonada foi a dos filhos de branco com negro, o filho rejeitado do patrão. Foram os primeiros vagabundos, que não serviam nem para um nem para outro, nem para escravo nem para senhor. É uma teoria pequena minha, não é a regra."

Invertendo o jogo, admite que ele mesmo, por mais evolução que persiga, ainda tem suas questões de preconceito para resolver. "Eu era pobre e louco, não conseguia ver um playboy como um ser humano. Hoje consigo, mas não significa que goste dele. Sei que ele deve ter filho, mãe, tudo, mas isso não quer dizer que eu queira fazer parte da família dele." Com olhar firme, um cigarro entre os dedos e ciente de aonde quer chegar com sua música, Brown finaliza: "Se existe algum tipo de radicalismo, estou exercendo mais ele hoje".







fonte


http://www.rollingstone.com.br/edicoes/39/textos/mano-brown-eminencia-parda/





Nenhum comentário:

Postar um comentário