quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Eminência Parda

Mano Brown se diz mudado, apesar de também afirmar que continua o mesmo. Entre a família, o rap, os amigos e os negócios, um dos artistas mais importantes dos nossos dias quer deixar de ser um refém da imagem que ele mesmo ajudou a disseminar


Ô zica, a fita é a seguinte: entra na praça à direita, depois pega a primeira à esquerda e, por último, à direita de novo. Tem de fazer um 'Z'. Vamos decidir a parada hoje. Qualquer coisa, me liga." O roteiro chega pelo celular. É noite abafada, começo de novembro, quando deixo a porta da Escola de Samba Pérola Negra, na Vila Madalena, em São Paulo, reduto contemporâneo da boemia paulistana, rumo a um bairro vizinho. Da outra ponta da linha chega mais uma senha: "É pique rua de periferia, tem casinhas humildes". Nos quase dez minutos para percorrer as ruas da área oeste de São Paulo, um flashback: a conversa cara a cara prestes a começar, na verdade, era o desfecho de um debate iniciado três anos antes.

Ao apontar na "rua estilo periferia", encravada no bairro classe média, ninguém à espera. Chamo ao telefone e, em segundos, percebo pelo retrovisor surgir alguém vestido com uma camisa Adidas vermelha da seleção da Turquia, nº 17 às costas, calça jeans e tênis Nike. Sorrisão na cara, cabelo raspado, com um risco à la Mike Tyson, o homem pardo à porta é Pedro Paulo Soares Pereira, um dos mais intrigantes e importantes artistas da música brasileira ao longo das últimas duas décadas, dono de versos cujos ecos estão impregnados em todo o Brasil. O aperto de mãos é acompanhado do cumprimento com origem no candomblé, ombro a ombro. Pedro Paulo convida para entrar na casa dos seus amigos, onde ouve um som.

A voz de Jorge, então somente Ben, domina o ambiente. Vem de um computador. Ele canta "Lorraine" acompanhado de Tim Maia na gravação de um show em 1981. Pedro Paulo vibra, mas os acompanha discretamente. "Os dois são referências pra mim", reverencia. Ele teve o sonho, mas não conseguiu gravar com Tim. Nem com Wilson Simonal, outro ídolo. Mas tem orgulho de já ter dividido o palco com Jorge. Quando a música para, rompo o breve silêncio para perguntar se ele está mesmo decidido a falar e a finalmente aparecer sozinho na capa da Rolling Stone. "É a hora! Tenho coisas para falar. Querem me ouvir, vou falar."

Pedro Paulo se tornará quarentão em abril próximo. "Estou virando um tiozinho, mano." Antes de bater nos quatro ponto zero, ele surpreenderá novamente quem o escuta desde 1988, quando tinha 18 anos e entrou nos ouvidos de muitos brasileiros - por amor ou por ódio - com suas rimas. Pedro Paulo é Mano Brown, a mais importante, influente e respeitada personalidade do rap brasileiro, o piloto dos Racionais MC's, uma das vozes das periferias do país - posição rejeitada por ele, mesmo depois de ter guiado o único grupo nacional de rap capaz de vender 1,5 milhão de discos oficialmente no Brasil até hoje (sem contar outros cerca de quatro milhões na conta da pirataria). Mas aquele Mano Brown conhecido pelo Brasil "estava condenado a virar estátua, sem utilidade", como ele mesmo diz, na sua autodefinição.

"O Racionais parece ter uma cartilha a seguir e não fomos nós que a escrevemos. Foi a opinião pública. Somos reféns das palavras, mas não posso ser refém de nada, nem do rap. Vamos quebrar. Aquele Mano Brown virou sistema viciado, uma estátua óbvia demais. Pergunta tal coisa que ele vai responder tal coisa. Eu estava mapeado e rastreado", constata. Para registrar parte desta nova fase, foram quatro encontros e cerca de 15 horas de conversas mantidas ao longo de 11 dias do mês de novembro último, incluindo uma sessão de fotos - colada em uma outra sessão para ouvir algumas das novas músicas, ainda inéditas. Neste bonde estão o músico com formação clássica e compositor William Magalhães, filho do lendário Oberdan Magalhães, alma da fábrica de samba-soul-funk Banda Black Rio, e o rapper Marcos Dias Carneiro, o Dom Pixote, a quem Brown vez ou outra chama de Fiote. Antes de ter sido assassinado em alguma rua da Babilônia paulistana, o irmão mais velho de Dom Pixote o ensinou a ouvir Racionais. Para Brown, o talento de Pixote no rap é a vingança do irmão de sangue.

Cinco dias após o encontro no lado oeste, Mano Brown chega à casa da veterana fotógrafa inglesa naturalizada brasileira Maureen Bisilliat, no coração dos Jardins, bairro elitizado paulistano. Está a bordo de um Audi A3 preto. No bolso, uma onipresente escova de dentes.

Ele e a dona da casa se admiram. "Ela tem uma mente mil grau", diz. Sempre quando atraca por lá, faz questão de já saltar do carro e ir direto apertar as mãos dos trabalhadores da rua, os manobristas, os seguranças, os porteiros. "Gente que serve os bacanas" e gosta de sua música e de seu jeito.

Na cadeira de balanço da sala repleta de fotografias e peças de arte do Xingu, o rapper tenta organizar os pensamentos, milhares e difusos. "Tenho tanta coisa para falar, meu Deus do céu." Está de regata branca, tatuagens à mostra. Do antebraço esquerdo salta um mapa do continente africano. Do braço direito, uma cruz onde se lê "Provérbios 15-16-17". Ele já foi do candomblé e frequentou igrejas evangélicas. Hoje, diz não ter mais credo. Levanta, vai até o cinzeiro, apaga o cigarro. "Sou contra a religião. Porque virou empresa. Deus está nas pequenas coisas." A cruz na pele é a mesma estampada na capa do disco Sobrevivendo no Inferno, marco de 1998.

Tento uma pequena provocação, invertendo uma ordem jornalística, e peço para Brown começar a falar. Ele retruca sutilmente: "Não, cara. Você tem que perguntar. Sair falando assim é foda. Posso até sair falando, mas tem que ser interessante, né?" E emenda que, em 80% do tempo, não há separação entre o cidadão, o ídolo Mano Brown e o pai de família Pedro Paulo, marido de Eliane e pai de Jorge, 14 anos, e de Domênica, 10 anos, batizados em homenagem declarada a Ben (ele já teve um time de futebol chamado Charles 45). "Mas, em 20% do tempo, separo. Senão fica todo mundo louco, nem eu aguento. É uma situação em que tenho de usar a inteligência. Não dá para ser politizado sempre, músico sempre, engajado sempre. Também tenho meu momento de ser simplesmente um ser humano, gostar do que todo mundo gosta, fazer parte. Tento ser companheiro e ter companhias mesmo sendo o Brown. É difícil ser companhia de um cara que nem eu, deste nome, 'Mano Brown'."

Antes de explicar a tal dificuldade, Brown já está com outro cigarro entre os dedos, tragadas fortes, fumaça para o alto, testa franzida, sobrancelhas em itálico. "Porque gera expectativa de várias coisas. Nem todo mundo que está comigo tem que estar engajado nessas minhas ideias, nessa vida que tenho. As pessoas também são livres. Daí eu prefiro andar com pessoas comuns, que pensam o que eu penso, mas não vivem diretamente das coisas que eu falo e canto. Pessoas comuns, que entendem e têm uma forma mais equilibrada de enxergar a vida. Há predisposição do rapper em ser contestador e nem sempre as pessoas que estão ao meu redor são assim, e eu preciso delas ao meu lado para me dar essa noção do que é o povo e do que eu queria que fosse o povo também."

Ao lado - e não à frente - é onde ele muitas vezes gostaria de estar. Há dias em que Brown deseja ser simplesmente um vagão qualquer do trem que não a locomotiva. "Eu queria ser mais um. Mais uma roda, não o propormaquinista. Não dá para nascer Bob Marley todo dia, não dá para nascer Tupac ou Lula todo dia."

Por isso, hoje, diz que seu rap não tem mais de ser conselheiro de ninguém, e sim companheiro. Os anos de guerrilha - e já se vão 21 desde a estreia em disco, Holocausto Urbano - forjaram o guerreiro de versos duros que hoje busca outras formas de cantar a mesma realidade dos bairros pobres das grandes cidades.

"Não vou mais traçar retrato de lugar nenhum para ninguém. Muito menos para os ricos. Eu não vou mais mapear minha quebrada para os caras. Não vou lavar roupa suja para eles ouvirem."

O tempo passou e o Mano Brown de hoje é bem diferente daquele que ainda habita o imaginário brasileiro. "Eu ouvia pouco. Falava muito e ouvia pouco.Hoje, eu continuo falando muito, mas eu ouço muito também. Isso interfere nas músicas, não tem como negar", constata.

Para ouvir, Brown teve de se aproximar das pessoas ao seu redor, e não no sentido físico. "Antes, os caras faziam festa, todo mundo feliz, só cerveja, e eu na água, caretão, trouxão no meio dos caras. Todo mundo lá e eu só sentado, vendo os problemas sociais da festa. Meus amigos felizes pra caramba e eu: 'É, mano, o segurança lá... [fecha a cara para simular estar nervoso]'. Vi que estava isolado, vivia numa bolha social."

Sem querer passar fórmulas de como fazer rap ou lições de vida, diz: "A gente é o que a gente come, bebe, respira e convive, irmão. Você vai se ilhar em uma filosofia que só pertence a você? Inteligência é estar no convívio, participando, interagindo. Não é se isolar. Essa empáfi a de achar que sabe tudo e os outros não sabem nada passou a me irritar. No rap, isso me irrita".

Ele reconhece a evolução que ainda busca para o seu rap no funk feito ao estilo carioca, com suas batidas cruas e definidoras de uma identidade tribal. Sabe que funk e rap podem formar grande parceria. "Gosto [do funk] porque sou contra esses preconceitos furados de achar que música arrasta [corrompe] alguém. Arrasta quem já é predisposto a ser arrastado."

Para escrever o próximo capítulo da história da sua música, nestes sete anos sem disco inédito dos Racionais, Brown esteve na França, na Inglaterra, em Portugal e, no seu rasante mais importante, na "república dos loucos", como define Christiania, bairro dinamarquês hippie de Copenhague. O lugar mereceu versos para um rap ainda inédito apresentado na nossa conversa e que acabou perdido no computador de algum amigo. A batida, "num estilo mais Los Angeles" - que é onde Brown quer chegar quando produz suas novas bases - foi feita numa espécie de oficina de rap, ao lado de franceses, norte-americanos e colombianos. "Quero que minha música tenha a mesma pegada da música feita pelo George Clinton."

Outros setores da vida de Mano Brown andam na velocidade da luz. Hoje, além da música, sempre o tema que mais o atrai e o deixa solto ("Me perguntam pouco sobre música", diz durante o ensaio fotográfico, enquanto dança um ou outro sucesso do rap norte-americano, uma inusitada exceção já que gosta mesmo é de música antiga), Brown divide seu tempo entre muitas reuniões. É raro o dia em que não rasga as ruas de São Paulo no A3 para sentar à mesa e ouvir propostas de parceria em algum negócio - situação inexistente no passado. Ele afirma sempre fazê-lo pensando no rap, em progresso para a música. "Precisamos evoluir nesse nosso movimento de música."

Mas ele não quer pouco. Não se diz simplesmente aberto para negócios. "Aberto não é o termo", explica, rindo forte. Ainda é jogo duro. "Vamos colocar uma explicação para isso: tudo que for para um benefício coletivo, um progresso autossustentável, estou aí para ouvir. Nada que seja escravagista, nada que seja paternalista do rico para o pobre. Quero que o barato venha, que a gente consiga organizar e que funcione por muito tempo. Esse é o termo do momento, mundial: sustentabilidade", diz, com um sorriso ainda mais forte, para depois contar o desejo de uma indústria de música negra forte no Brasil. "Tenho o sonho de ter tipo uma Motown [hoje os Racionais são donos da gravadora Cosa Nostra]." E, se a Globo voltar a convidá-los para um programa de TV, como já fez no passado, diz, haverá votação instantânea entre os integrantes do que ele chama de "família" - músicos, produtores e amigos que acompanham as ideias de Brown.

fonte


http://www.rollingstone.com.br/edicoes/39/textos/mano-brown-eminencia-parda/

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